segunda-feira, outubro 17, 2005

De trás pra frente

Ficar muito tempo sem escrever dá nisso. A memória funciona melhor revisitando o mais próximo primeiro. E fazendo o caminho contrário. Mais ou menos como quando perdemos alguma coisa. O que me leva ao começo, ou melhor, ao fim desta história.
Perdi meu celular. Impressionante como ficamos dependentes destes bichinhos.Mas enfim, vejo como um sopro de liberdade!
Mas um pouco antes eu deliciava um domingo em família. Ao som de Tom Waits, como quase de costume, conhecendo vinho de uva diferente, comendo um namorado bem cozido (peixe mesmo, pros mais sujos) ... e, antes ainda, eu dormia. Profundamente. Por longas horas. Depois de trabalhar arduamente sobre saltos cruéis e ter de falar para muitas, muitas pessoas de nomes deveras estranhos.
Mas o diferencial estava na minha obsessão. Quero um buraco. Quero-o muito. Pensei em anunciar nos classificados:

"Compro um buraco.
Mas não qualquer um.
Preciso do fora do comum.

Ao contrário.
Que seja um buraco do avesso.
De plástico, madeira ou gesso.

Pros menos poéticos
e mais exatos,
preciso dum prato.

Dum troço abaulado
convexo, circular
que se possa pendurar.

Negro, incolor
mas não transparente!
De 10 de raio, aproximadamente.

É que eu quero um buraco
pra tampar o buraco
que tenho na parede."

Não acredito que o encontraria assim. Deste modo, postergo o anuncio. Mas está ai, em todo caso.

***
Hoje fez-se a luz. E com ela o deslumbramento. Começou o horário de verão e com ele posso descobri uma nova cidade. Aquela dos dias úteis que se escondia após as 18h. Fico feliz e não perco tempo. Atirei-me à estação anunciada. Digamos: uma pré estréia.

Isto me lembnra cinema, o que tem tudo a ver com a primeira aventura vespertina. Reserva Cultura. Tanta lenda, fui conferir. E por sorte de principiante foi uma grande inauguração. "O jardineir fiel", de Meirelles, adaptação do livro homônimo de Carré. Tocante. Quero a trilha sonora agora. Mas não foi só o que ficou. Seria insensibilidade.

Pra que ordem, não é mesmo? quem disse que a memória se organiza em ordem cronológica?

Passei por um dia lacônica. Me custou um acúmulo de palavras que agora só se eu encenasse um monólogo. Mas passei incólume. E exultante. Por que no silêncio fiz muitas descobertas. Descobri Lygia Fagundes Telles e seu " Senso de Humor". " O bem humorado é um esteta!"

Desvendei o sincretismo e amanheci a vontade de ser maluca em tempo integral. Nas ruas as pessoas interessantes passavam de uniforme. E eu querendo o manual defenestrado. Mas ainda sou a mesma. Continuo sonhando com asas nos pés.

Sei que às vezes, por exemplo ao deitar todas estas palavras, sôo difícil. Mas sou muito mais.

Sou fugitiva.
"Eu nasci assim. Meio mineira. Meio fluminense (metade que ficou pra trás). Meio portuguesa, meio italiana. Meio índia. Bem brasileira.
É importante botar reparo que meio é só força de expressão. Que ao nascer eu inda num era mais que uma.
Isso foi lá perto do mar, só que do lado de cá da serra, que fazia dele alienado. Dos outros mesmo.
Então começou a andança. Muda de casa, de guarda, de escola. Enfim de cidade. E daí, já parecia que sair era sempre opção. Bem ao melhor estilo - os incomodados que se retirem.
Cada vez que mudava era uma chance de ser outra. Chance que não perdi.
Fui filha única, neta mimada, menina rica. Fui irmã mais velha e irmã caçula. Fui preguiçosa. Fui campeã. Fui café com leite. Fui namorada. Atleta aqui, destemida acolá. Fresca. Não fui revoltada, nunca. Ainda. Fui alerta e fui desatenta. Exigente. Detalhista. Fui desinibida. Até exibida fui. Fui bruxa. Fui amiga. E não querida. Fui "baixinha". E fui a mais alta, última da fila. Fui rápida. Fui bonita. Fui quebrada. Fui educada e comportada. E fui moleque com quatro rodas. Ou mais.
Fui teimosa. Fui boas notas. Fui calada, pasmem. Fui tolerante. Fui sábia e fui lábia. Fui idéia. Fui feliz. Fui depressiva, escondida. Fui simpática. Fui sozinha. Fui homonegeizada. Fui diferente. Fui até interessante às vezes. Fui cega. Fui de um estilo. E de outros. Fui egoísta. Fui generosa. Fui paciente. Fui esperançosa. Fui precoce. Fui careta. Fui sem grana. Mas de bom humor. Fui eleita. Fui meiga. Fui assertiva. Fui um entojo. Reacionária. Liberal. Fui livre. E, sem querer, fui mentirosa. Quando disse brincando: não sou fugitiva."

1 Comments:

At 2:40 PM, Anonymous Anônimo said...

Comento de trás pra frente. Várias vezes fiz isso mal feito e só comentei o final.

Você é Dea.
Ser maluca em tempo integral deve ser uma experiência deveras interessante, ainda mais com tanta gente de uniforme à vista.

Ainda acho que devíamos ser um país onde o sol do verão se pusesse às 21h30 e as estações do ano se definissem. Não que o calor seco do cerrado não tenha a sua graça.

Publicar um poema nos classificados deve sair caro pacas. Restrições financeiras gerando restrições literárias nas pessoas... uma pena.

Vinho com peixe, família e boas horas de sono. Preciso de férias.

Perdeu o celular? Perdi minha estabilidade em muitas coisas. Se explicasse daria muito mais palavras do que no fim do seu post.

Beijos com muitas saudades.

 

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